Nesta parte do livro, Darcy Ribeiro nos
apresenta através de sua pesquisa que a identidade dos brasileiros se explica
pela precocidade de sua constituição e pela flexibilidade, que permitiram uma
adaptação secular, ajustamentos locais e a sobrevivência dos ciclos produtivos.
Identificou cinco tipos de Brasis, ou seja, cinco regiões extremamente
diferentes, com costumes, tradições e culturas diversas.
O Brasil crioulo
localizado na região do recôncavo baiano, no nordeste brasileiro, tem no centro
de seu contexto, os grandes engenhos. Em resumo, este Brasil inicialmente era
dominado pelos senhores de engenho e tinha na cana-de-açúcar a sua principal
fonte produtiva. Em um primeiro contato do português com o indígena, ocorre a
tentativa infeliz de escravizá-lo, desta forma, a solução para o problema de
mão de obra para o ciclo de produção da cana-de-açúcar aparece com o comércio
de escravos (negros), para suprir a escassez da mão de obra.
Com a produção de
açúcar holandesa nas Antilhas, a economia brasileira começou a entrar em
declínio. No fim do século XIX, com a abolição da escravatura, os negros
passaram a ganhar um pedaço de terras para trabalhar como agregados e poder
adquirir produtos do senhor de engenho. O Brasil caboclo ocorre na Amazônia,
com a tentativa de explorar seus recursos naturais, como a madeira, o ouro, as
pedras preciosas, e especialmente os seringais. O autor explica que mesmo nas
zonas de maior densidade, os seringais cobrem enormes extensões, impedindo que
a população se organize em núcleos consideráveis. Além disso, ocorreu a
introdução de novas culturas, como a criação de gado e o plantio de lavouras,
tudo isto feito de forma desordenada, e sem consciência ecológica, empurrando o
índio “mata a dentro” cada vez mais, dificultando o processo de tentar
convertê-los ao catolicismo. Neste contexto, alguns indígenas foram
escravizados, na tentativa de utilizar de suas técnicas na floresta para
realizar o extrativismo das chamadas “drogas da mata”, especiarias como cacau,
cravo, canela, baunilha, sementes, entre outras.
O Brasil sertanejo
desenvolveu uma economia associada à produção de uma subcultura própria
caracterizada por uma vestimenta, culinária e visão de mundo bem típicas.
Primeiramente o pastoreio se fazia pelos próprios senhores de engenho, mas com
o tempo a atividade tornou-se especificidade de criadores. O gado era recebido
pela família do vaqueiro e seus ajudantes, sendo que as relações eram menos
desiguais nesse sistema, o que atraía muitos mestiços à atividade. Este sistema
surge como dependente da atividade açucareira, utilizando das pastagens e do
gado trazidos pelos portugueses de Cabo Verde. A necessidade de recuperar e
apartar o gado levou à cooperação entre as pessoas, acabando por transformar a
convivência entre as mesmas. Desta convivência surgiram festas, bailes,
casamentos e uma maior atividade social no movimento de expansão. O sertão era
cortado e ocupado pelos homens que marchavam de pouco em pouco, avançando cada
vez mais para o interior, as populações sertanejas, desenvolvendo-se isoladas
da costa, dispersas em pequenos núcleos através do deserto humano que é o
mediterrâneo pastoril, conservaram muitos traços arcaicos. Aos poucos, os
lugarejos iam se transformando em vilas e cidades, fazendo crescer os locais de
habitação urbanos, tornando-se um grande negócio para as oligarquias regionais,
que perduram até os dias de hoje.
Outro
Brasil que o autor identificou foi o Brasil caipira. Enquanto os açucareiros do
nordeste cresciam e enriqueciam, a população paulista se via numa economia de
pobreza, que, inclusive, está na base das motivações e dos hábitos e caráter do
paulista antigo. Isso fazia deles um bando de aventureiros sempre disponíveis
para qualquer tarefa desesperada, porém, mais predispostos ao saqueio que à
produção. Com a descoberta das minas, multidões vindas de todo o país e até de
Portugal chegaram até elas, ricos, remediados e pobres, todos tentavam a sorte
nas minas. Inicialmente, o ouro se encontrava à flor da terra para simplesmente
ser apanhado. Logo apareceram graves conflitos contra invasores e contra a
Coroa.
A sociedade mineira, centro da mineração, adquiriu feições peculiares
com influências paulistas, européias, escravas e de outros brasileiros de
outras regiões. A rede urbana ampliou-se, cresciam edifícios públicos, igrejas
e a arquitetura barroca. Desenvolveu-se uma classe de ricos comerciantes e burocratas.
A literatura, a música e a política libertária também tiveram um grande
desenvolvimento. Abaixo das castas superiores estavam o mulato e o negro, que
faziam serviços domésticos e trabalhos braçais. Na base da sociedade estavam os
negros escravos trabalhadores das minas. Com o esgotamento dos aluviões, a
região entra em decadência. Mineradores se fazem fazendeiros de lavouras de
subsistência e de gado, essa situação duraria pouco, pois logo surgiria uma
nova forma de produção agroexportadora: o plantio do café, que revitalizaria a
região. As cidades voltam a crescer, o domínio da oligarquia se remonopoliza e
ocorre um processo de reordenação social. A produção diminui e torna-se
pequena, se comparada à produção de sua época áurea. O café representou um
papel modernizador e integrador para o país, porém movia-se sempre para a
frente, deixando para trás áreas devastadas e erodidas. A massa de estrangeiros
que aqui chegavam e iam se abrasileirando e deixando suas influência para este
Brasil caipira.
A expansão dos
paulistas atingiu a região sulina, antes dominada por espanhóis, tendo sido
esta a causa que anexou a região Sul ao Brasil. Surge desta forma, o Brasil
sulino. Houveram também as missões jesuíticas, que vieram para catequizar os
índios guaranis, depois se deram os conflitos com os bandeirantes que dizimaram
muitos índios guaranis, forçando os jesuítas a se bandearem pras missões
argentinas e paraguaias. Os três componentes sociais do Brasil sulino são o
nativo de origem açoriana, o gaúcho (mestiço do espanhol ou do português com o
indígena guarani) e o gringo (descendente do imigrante).
O terceiro grupo, o
dos gringos, de origem germânica e italiana principalmente, diferencia-se do
restante da população por seu bilingüismo, seus hábitos europeus, seu nível
educacional mais elevado e um modo de vida confinado em pequenas propriedades,
com uma produção diversificada, com base em bovinos, plantio, vinho, entre
outras culturas. Imigrantes europeus foram obrigados a aprender o idioma
português e a alistar-se nas forças armadas brasileiras. No Brasil sulino
ocorreu ainda a distribuição de terras de forma legal, as chamadas sesmarias,
na região de Rio Grande, Pelotas, Viamão e Missões. Os estancieiros viram
caudilhos e mais tarde se tornam patrões e em tempos menos distantes, tornam-se
proprietários de frigoríficos e matadouros. As gerações seguintes,
beneficiárias dos resultados desses sacrifícios pioneiros, encontraram
condições mais propícias.
Muitos
índios e poucos portugueses, misturados pelos jesuítas, eis a origem do nosso
caboclo, que habita no lugar de beleza incomparável, beleza só nossa e de
alguns vizinhos, a beleza da Amazônia. O chamado Jardim da Terra, de uma
extensão imensa. Lá impera a exuberância e o mistério, o mito das riquezas, do
ouro e da prata. Das mulheres guerreiras, de gigantes e de anões, das drogas e
das plantas fantásticas. A chegada dos europeus representou a catástrofe. As
doenças que trouxeram entraram no corpo dos índios para dizimá-los. Foi o
sarampo, a bexiga, as cáries dentárias, a caxumba e as gripes. todas mataram
grande número de índios. Os que sobraram foram transformados em escravos, para
a coleta das drogas do sertão, ou então ficaram sob o controle da catequese de
jesuítas, carmelitas e franciscanos.
Este caboclos se transformaram em índios
genéricos, sem língua própria, sem identidade. Uma enorme massa de índios, de
poucos brancos e negros formou uma nova matriz étnica. Falavam o tupi, uma
língua estrangeira que lhes foi trazida pelos jesuítas. O português era apenas
a segunda língua, que foi se firmando, graças aos esforços, no segundo reinado.
Viviam das drogas do sertão e da abundância da natureza, da forma mais
rudimentar e primitiva. A partir de 1880 ocorreu a primeira grande
transformação, que marcou o seu maior florescimento econômico. A borracha abriu
um ciclo econômico vinculado com a exportação, com a Europa. Para lá é que eram
drenados todos os recursos. O seringueiro levava uma vida desgraçada e que
conheceu uma nova forma de exploração, o sistema de aviamento. Ele recebia
adiantamente as mercadorias que precisava, poucas na verdade: comida, roupas,
pólvora, e pagava depois, mas nunca conseguia pagar. As contas sempre
pendiam para um lado só. Manaus transformou-se na capital mundial da borracha e
Belém na capital da Amazônia. Depois da primeira guerra o cenário muda. A
Malásia domina o mercado da borracha e aqui ocorre a debandada. Empresários se
suicidam, casas e palácios começam a ruir e Manaus, a primeira cidade
brasileira a ter telefone, energia elétrica e bondes, na década de cinquenta
nem energia elétrica mais tinha. Um novo período de desastres se reabrirá com o
projeto dos militares golpistas. Queriam integrar a amazônia, loteando-a para os grandes grupos
internacionais. Com a Transamazônica queriam levar a modernidade à região. Mas
só inauguraram uma nova via crucis de conflitos agrários e de destruição de
áreas indígenas. A desintegração e os conflitos tomam conta da região. A
contradição é percebida e os povos da floresta se organizam. A morte de Chico
Mendes representa simbolicamente todo este conflito. Até hoje a civilização se
mostrou incapaz de produzir um sistema de viabilidade econômica às condições da
floresta tropical. E segundo Darcy Ribeiro
lá vive o povo mais culto da terra, o povo mais culto do Brasil. Tem dez
mil anos de sabedoria herdada, de convívio com a natureza e de saber sobreviver
nela, sem degradá-la. O que não seria de uma economia que incorporasse o
cupuaçu, o bacuri e tantas outras frutas numa agricultura organizada.
FONTE: "O Povo Brasileiro - Darcy Ribeiro"