quarta-feira, 21 de setembro de 2016

CAPITULO III - O PROCESSO SOCIOCULTURAL - parte 2


A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros. Entretanto a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. As atuais classes dominantes brasileira, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos, guardam diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construíra, negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas sem que pudesse educar seus filhos e de qualquer ordem de assistência. Porém, o negro urbano veio a ser o que há de mais vigoroso e belo na cultura popular brasileira, com base nela é que se estrutura o nosso Carnaval, o culto de Iemanjá, a capoeira e inumeráveis manifestações culturais. O negro aproveita cada oportunidade que lhe é dada para expressar o seu valor, isso ocorre em todos os campos em que não exige escolaridade, como por exemplo na MPB, no futebol e outras formas de competição e de expressão. O enorme contingente de negro e mulato, é talvez, o mais brasileiro dos componentes de nosso povo. O mulato em virtude de seu vigor híbrido e talvez por isso possuem maiores chances de ascensão social, ainda que só progredisse na medida em que negava sua negritute. Nos últimos anos, por efeito do sucesso do negro americano, que foi tido pelos brasileiros como uma vitória da raça, o negro brasileiro vem tomando coragem de assumir orgulhosamente sua condição de negro. O mesmo ocorreu a muitos mulatos que saltaram para o lado negro de sua dupla natureza. A característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele. Nessa escala, negro é o negro retinto, o mulato já é o pardo e como tal meio branco, e se a pele é um pouco mais clara, já passa a incorporar a comunidade branca. O aspecto mais perverso do racismo assimilicionista é que ele dá de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a que é submetido. A democracia racial é possível, mas ó é praticável conjuntamente com a democracia social. Ou bem há democracia para todos, ou não há democracia para ninguém, porque à opressão do negro condenado à dignidade de lutador da liberdade, coresponde o opróbrio do branco posto no papel de opressor dentro de sua própria sociedade.
O censo de 1950 permite algumas comparações significativas entre as condições de vida e de trabalho de negros e brancos na população brasileira ativa. Considerando, por exemplo, o grupo patronal em conjunto, verifica-se que as possibilidades de um negro chegar a integrá-lo são enormemente menores, já que de cada mil brancos ativos maiores de dez anos, 23 são empregadores, contra apenas quatro pretos donos de empresas por cada mil empregados. Examinando a carreira do negro no Brasil se verifica que introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à execução das tarefas mais duras,  como mão de obra fundamental de todos os setores produtivos.
Tratado como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via preso a novas formas de exploração que , embora melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar-se na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava sendo principalmente o de animal de serviço. Apesar da associação da pobreza com a negritude, as diferenças profundas que separam a e opõem os brasileiros em extratos flagrantemente contrastantes são de natureza social. Entretanto, o vigor da ideologia assimilacionista, assentada na cultura vulgar e também ensinada nas escolas, e das atitudes que começam a generalizar-se entre todos os brasileiros de orgulho por sua origem multirracial, e dos negros por sua própria ancestralidade, permitirão enfrentar com êxito as tensões sociais decorrentes de uma ascensão do negro, que lhe augure uma participação igualitária na sociedade nacional. É preciso que assim seja, porque somente assim se há de superar um dos conflitos mais dramáticos que desgarra a solidariedade dos brasileiros.
O contingente imigratória europeu intergrado na população brasileira é avaliado em 5 milhões de pessoas compostos principalmente por portugueses, que vieram desde os primeiros séculos e se tornaram dominantes pela multiplicação operada através do caldeamento com índios e negros, posteriormente seguem-se os italianos, os espanhóis, os alemães, os japoneses e outros contingentes menores de eslavos e árabes. O papel do imigrante foi muito importante como formador de certos conglomerados regionais nas áreas sulinas em que mais se concentrou, criando paisagens caracteristicamente europeias e populações dominadoramente brancas.
O conjunto plasmado com tantas contribuições, é essencialmente uno enquanto etnia nacional, não deixando lugar a que tensões eventuais se organizem em torno de unidades regionais, raciais ou culturais opostas. Uma mesma cultura a todos engloba e uma vigorosa autodefinição nacional, cada vez mais brasileira, a todos anima. Esse brasileirismo é hoje tão arraigado que resulta em xenofobia, por um lado, e por outro lado, em vanglória nacionalista. Os brasileiros todos torcem nas copas do mundo com um sentimento tão profundo como se  se tratasse de guerra de nosso povo contra todos os outros povos do mundo. As vitórias são festejadas em cada família e as derrotas sofridas como vergonhas pessoais.
A contraparte dialética da intencionalidade do projeto colonial é o caráter anárquico, que obrigava a buscar soluções próprias ajustadas à sua natureza e agindo longe das vontades oficiais, a ação do colono exerceu-se quase sempre improvisadamente e ao sabor das circunstâncias. O maior susto que tiveram os portugueses, no passado, foi ver a força de trabalho escrava, reunida com propósitos exclusivamente mercantis para ser desgastada na produção, insurgir-se, pretendendo ser tida como gente com veleidades de autonomia e autogoverno. Do mesmo modo, a grande perplexidade das classes dominantes atuais é que esses descendentes daqueles negros, índios e mestiços ousem pensar que este país é uma república que deve ser dirigida pela vontade deles como seu povo que são. A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram no povo o no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes. Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de articulação com a economia mundial, que atuam como um fator de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança. Ao contrário do que ocorre nas sociedades autônomas, aqui o povo não existe para si e sim para outros. Ontem, era uma força de trabalho escrava de uma empresa agro mercantil exportadora. Hoje, é uma oferta de mão de obra que aspira a trabalhar e um mercado potencial que aspira a consumir. O patronato, na função de coordenador das atividades produtivas, e o patriciado, no exercício do papel de ordenador da vida social, puderam assim fazer frente a todas as tendências dissociativas, preservando a unidade nacional. Desse modo é que o Brasil se implanta como sociedade nacional sobre um imenso território, envolvendo milhões de pessoas mediante o crescimento e diversificação adaptativa do núcleo unitário original, simultaneamente com o estabelecimento de representações locais da mesma camada dirigente em dada uma das variantes regionais.
Transfiguração étnica é o processo através do qual os povos, enquanto entidades culturais, nascem, se transformam e morrem. O primeiro é a biótica que com as relações entre outros seres de regiões diferentes trouxeram epidemias e germes que traziam não o vitimavam mas exterminavam que se aproximasse a eles. Uma segunda instância é a ecológica, pela qual os seres vivos, por coexistirem, afetam-se uns aos outros em sua forma física, em seu desempenho vital. A terceira instância é a econômica, que, convertendo uma população em condição de existência material de outro, em prejuízo de si própria, pode levá-la ao extermínio. Uma última instância é a psicocultural que pode dizimar populações retirando-lhes o desejo de viver, como ocorreu com os povos indígenas que se deixaram morrer por não desejar a vida que se lhes ofereciam. Na história do Brasil, vimos surgir o brasilíndio como um contingente de vigor admirável tanto na destruição de seu gentio materno, como forma de expandir-se, quanto apropriando-se de mulheres para reproduzir. Vimos algo semelhante ocorrer com o negro, que, refugiando-se num quilombo, reconstitui a vida que aprendera a viver no núcleo colonial de forma a readquirir sua dignidade e possibilitar sua sobrevivência. A imigração estrangeira, principalmente de pobres trabalhadores brancos europeus, tornados excedentes de suas economias nacionais, representou também uma enorme ameaça de transfiguração da população brasileira preexistente, tal como ocorreu no Uruguai e Argentina. Tais são os brasileiros de hoje, na etapa que atravessam de sua luta pela existência. Já não há praticamente índios ameaçando o seu destino. Também os negros desafricanizados se integram nela como um contingente diferenciado, mas que não aspira a nenhuma autonomia étnica. O próprio branco vai ficando cada vez mais moreno e até orgulhoso disso.

Fonte: "O Povo Brasileiro - Darcy Ribeiro."

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