quinta-feira, 29 de setembro de 2016

CAPITULO IV - OS BRASIS NA HISTÓRIA


Nesta parte do livro, Darcy Ribeiro nos apresenta através de sua pesquisa que a identidade dos brasileiros se explica pela precocidade de sua constituição e pela flexibilidade, que permitiram uma adaptação secular, ajustamentos locais e a sobrevivência dos ciclos produtivos. Identificou cinco tipos de Brasis, ou seja, cinco regiões extremamente diferentes, com costumes, tradições e culturas diversas.
O Brasil crioulo localizado na região do recôncavo baiano, no nordeste brasileiro, tem no centro de seu contexto, os grandes engenhos. Em resumo, este Brasil inicialmente era dominado pelos senhores de engenho e tinha na cana-de-açúcar a sua principal fonte produtiva. Em um primeiro contato do português com o indígena, ocorre a tentativa infeliz de escravizá-lo, desta forma, a solução para o problema de mão de obra para o ciclo de produção da cana-de-açúcar aparece com o comércio de escravos (negros), para suprir a escassez da mão de obra.
Com a produção de açúcar holandesa nas Antilhas, a economia brasileira começou a entrar em declínio. No fim do século XIX, com a abolição da escravatura, os negros passaram a ganhar um pedaço de terras para trabalhar como agregados e poder adquirir produtos do senhor de engenho. O Brasil caboclo ocorre na Amazônia, com a tentativa de explorar seus recursos naturais, como a madeira, o ouro, as pedras preciosas, e especialmente os seringais. O autor explica que mesmo nas zonas de maior densidade, os seringais cobrem enormes extensões, impedindo que a população se organize em núcleos consideráveis. Além disso, ocorreu a introdução de novas culturas, como a criação de gado e o plantio de lavouras, tudo isto feito de forma desordenada, e sem consciência ecológica, empurrando o índio “mata a dentro” cada vez mais, dificultando o processo de tentar convertê-los ao catolicismo. Neste contexto, alguns indígenas foram escravizados, na tentativa de utilizar de suas técnicas na floresta para realizar o extrativismo das chamadas “drogas da mata”, especiarias como cacau, cravo, canela, baunilha, sementes, entre outras.
O Brasil sertanejo desenvolveu uma economia associada à produção de uma subcultura própria caracterizada por uma vestimenta, culinária e visão de mundo bem típicas. Primeiramente o pastoreio se fazia pelos próprios senhores de engenho, mas com o tempo a atividade tornou-se especificidade de criadores. O gado era recebido pela família do vaqueiro e seus ajudantes, sendo que as relações eram menos desiguais nesse sistema, o que atraía muitos mestiços à atividade. Este sistema surge como dependente da atividade açucareira, utilizando das pastagens e do gado trazidos pelos portugueses de Cabo Verde. A necessidade de recuperar e apartar o gado levou à cooperação entre as pessoas, acabando por transformar a convivência entre as mesmas. Desta convivência surgiram festas, bailes, casamentos e uma maior atividade social no movimento de expansão. O sertão era cortado e ocupado pelos homens que marchavam de pouco em pouco, avançando cada vez mais para o interior, as populações sertanejas, desenvolvendo-se isoladas da costa, dispersas em pequenos núcleos através do deserto humano que é o mediterrâneo pastoril, conservaram muitos traços arcaicos. Aos poucos, os lugarejos iam se transformando em vilas e cidades, fazendo crescer os locais de habitação urbanos, tornando-se um grande negócio para as oligarquias regionais, que perduram até os dias de hoje.
 Outro Brasil que o autor identificou foi o Brasil caipira. Enquanto os açucareiros do nordeste cresciam e enriqueciam, a população paulista se via numa economia de pobreza, que, inclusive, está na base das motivações e dos hábitos e caráter do paulista antigo. Isso fazia deles um bando de aventureiros sempre disponíveis para qualquer tarefa desesperada, porém, mais predispostos ao saqueio que à produção. Com a descoberta das minas, multidões vindas de todo o país e até de Portugal chegaram até elas, ricos, remediados e pobres, todos tentavam a sorte nas minas. Inicialmente, o ouro se encontrava à flor da terra para simplesmente ser apanhado. Logo apareceram graves conflitos contra invasores e contra a Coroa. 
A sociedade mineira, centro da mineração, adquiriu feições peculiares com influências paulistas, européias, escravas e de outros brasileiros de outras regiões. A rede urbana ampliou-se, cresciam edifícios públicos, igrejas e a arquitetura barroca. Desenvolveu-se uma classe de ricos comerciantes e burocratas. A literatura, a música e a política libertária também tiveram um grande desenvolvimento. Abaixo das castas superiores estavam o mulato e o negro, que faziam serviços domésticos e trabalhos braçais. Na base da sociedade estavam os negros escravos trabalhadores das minas. Com o esgotamento dos aluviões, a região entra em decadência. Mineradores se fazem fazendeiros de lavouras de subsistência e de gado, essa situação duraria pouco, pois logo surgiria uma nova forma de produção agroexportadora: o plantio do café, que revitalizaria a região. As cidades voltam a crescer, o domínio da oligarquia se remonopoliza e ocorre um processo de reordenação social. A produção diminui e torna-se pequena, se comparada à produção de sua época áurea. O café representou um papel modernizador e integrador para o país, porém movia-se sempre para a frente, deixando para trás áreas devastadas e erodidas. A massa de estrangeiros que aqui chegavam e iam se abrasileirando e deixando suas influência para este Brasil caipira.

A expansão dos paulistas atingiu a região sulina, antes dominada por espanhóis, tendo sido esta a causa que anexou a região Sul ao Brasil. Surge desta forma, o Brasil sulino. Houveram também as missões jesuíticas, que vieram para catequizar os índios guaranis, depois se deram os conflitos com os bandeirantes que dizimaram muitos índios guaranis, forçando os jesuítas a se bandearem pras missões argentinas e paraguaias. Os três componentes sociais do Brasil sulino são o nativo de origem açoriana, o gaúcho (mestiço do espanhol ou do português com o indígena guarani) e o gringo (descendente do imigrante).
O terceiro grupo, o dos gringos, de origem germânica e italiana principalmente, diferencia-se do restante da população por seu bilingüismo, seus hábitos europeus, seu nível educacional mais elevado e um modo de vida confinado em pequenas propriedades, com uma produção diversificada, com base em bovinos, plantio, vinho, entre outras culturas. Imigrantes europeus foram obrigados a aprender o idioma português e a alistar-se nas forças armadas brasileiras. No Brasil sulino ocorreu ainda a distribuição de terras de forma legal, as chamadas sesmarias, na região de Rio Grande, Pelotas, Viamão e Missões. Os estancieiros viram caudilhos e mais tarde se tornam patrões e em tempos menos distantes, tornam-se proprietários de frigoríficos e matadouros. As gerações seguintes, beneficiárias dos resultados desses sacrifícios pioneiros, encontraram condições mais propícias.

Muitos índios e poucos portugueses, misturados pelos jesuítas, eis a origem do nosso caboclo, que habita no lugar de beleza incomparável, beleza só nossa e de alguns vizinhos, a beleza da Amazônia. O chamado Jardim da Terra, de uma extensão imensa. Lá impera a exuberância e o mistério, o mito das riquezas, do ouro e da prata. Das mulheres guerreiras, de gigantes e de anões, das drogas e das plantas fantásticas. A chegada dos europeus representou a catástrofe. As doenças que trouxeram entraram no corpo dos índios para dizimá-los. Foi o sarampo, a bexiga, as cáries dentárias, a caxumba e as gripes. todas mataram grande número de índios. Os que sobraram foram transformados em escravos, para a coleta das drogas do sertão, ou então ficaram sob o controle da catequese de jesuítas, carmelitas e franciscanos.
Este caboclos se transformaram em índios genéricos, sem língua própria, sem identidade. Uma enorme massa de índios, de poucos brancos e negros formou uma nova matriz étnica. Falavam o tupi, uma língua estrangeira que lhes foi trazida pelos jesuítas. O português era apenas a segunda língua, que foi se firmando, graças aos esforços, no segundo reinado. Viviam das drogas do sertão e da abundância da natureza, da forma mais rudimentar e primitiva. A partir de 1880 ocorreu a primeira grande transformação, que marcou o seu maior florescimento econômico. A borracha abriu um ciclo econômico vinculado com a exportação, com a Europa. Para lá é que eram drenados todos os recursos. O seringueiro levava uma vida desgraçada e que conheceu uma nova forma de exploração, o sistema de aviamento. Ele recebia adiantamente as mercadorias que precisava, poucas na verdade: comida, roupas, pólvora,  e pagava depois, mas nunca conseguia pagar. As contas sempre pendiam para um lado só. Manaus transformou-se na capital mundial da borracha e Belém na capital da Amazônia. Depois da primeira guerra o cenário muda. A Malásia domina o mercado da borracha e aqui ocorre a debandada. Empresários se suicidam, casas e palácios começam a ruir e Manaus, a primeira cidade brasileira a ter telefone, energia elétrica e bondes, na década de cinquenta nem energia elétrica mais tinha. Um novo período de desastres se reabrirá com o projeto dos militares golpistas. Queriam integrar a amazônia, loteando-a para os grandes grupos internacionais. Com a Transamazônica queriam levar a modernidade à região. Mas só inauguraram uma nova via crucis de conflitos agrários e de destruição de áreas indígenas. A desintegração e os conflitos tomam conta da região. A contradição é percebida e os povos da floresta se organizam. A morte de Chico Mendes representa simbolicamente todo este conflito. Até hoje a civilização se mostrou incapaz de produzir um sistema de viabilidade econômica às condições da floresta tropical. E segundo Darcy Ribeiro  lá vive o povo mais culto da terra, o povo mais culto do Brasil. Tem dez mil anos de sabedoria herdada, de convívio com a natureza e de saber sobreviver nela, sem degradá-la. O que não seria de uma economia que incorporasse o cupuaçu, o bacuri e tantas outras frutas numa agricultura organizada.

FONTE: "O Povo Brasileiro - Darcy Ribeiro"

quarta-feira, 21 de setembro de 2016

CAPITULO III - O PROCESSO SOCIOCULTURAL - parte 2


A distância social mais espantosa do Brasil é a que separa e opõe os pobres dos ricos. A ela se soma, porém, a discriminação que pesa sobre negros, mulatos e índios, sobretudo os primeiros. Entretanto a luta mais árdua do negro africano e de seus descendentes brasileiros foi, ainda é, a conquista de um lugar de um papel de participante legítimo na sociedade nacional. As atuais classes dominantes brasileira, feitas de filhos e netos dos antigos senhores de escravos, guardam diante do negro, a mesma atitude de desprezo vil. A nação brasileira, comandada por gente dessa mentalidade, nunca fez nada pela massa negra que a construíra, negou-lhe a posse de qualquer pedaço de terra para viver e cultivar, de escolas sem que pudesse educar seus filhos e de qualquer ordem de assistência. Porém, o negro urbano veio a ser o que há de mais vigoroso e belo na cultura popular brasileira, com base nela é que se estrutura o nosso Carnaval, o culto de Iemanjá, a capoeira e inumeráveis manifestações culturais. O negro aproveita cada oportunidade que lhe é dada para expressar o seu valor, isso ocorre em todos os campos em que não exige escolaridade, como por exemplo na MPB, no futebol e outras formas de competição e de expressão. O enorme contingente de negro e mulato, é talvez, o mais brasileiro dos componentes de nosso povo. O mulato em virtude de seu vigor híbrido e talvez por isso possuem maiores chances de ascensão social, ainda que só progredisse na medida em que negava sua negritute. Nos últimos anos, por efeito do sucesso do negro americano, que foi tido pelos brasileiros como uma vitória da raça, o negro brasileiro vem tomando coragem de assumir orgulhosamente sua condição de negro. O mesmo ocorreu a muitos mulatos que saltaram para o lado negro de sua dupla natureza. A característica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele. Nessa escala, negro é o negro retinto, o mulato já é o pardo e como tal meio branco, e se a pele é um pouco mais clara, já passa a incorporar a comunidade branca. O aspecto mais perverso do racismo assimilicionista é que ele dá de si uma imagem de maior sociabilidade, quando, de fato, desarma o negro para lutar contra a pobreza que lhe é imposta, e dissimula as condições de terrível violência a que é submetido. A democracia racial é possível, mas ó é praticável conjuntamente com a democracia social. Ou bem há democracia para todos, ou não há democracia para ninguém, porque à opressão do negro condenado à dignidade de lutador da liberdade, coresponde o opróbrio do branco posto no papel de opressor dentro de sua própria sociedade.
O censo de 1950 permite algumas comparações significativas entre as condições de vida e de trabalho de negros e brancos na população brasileira ativa. Considerando, por exemplo, o grupo patronal em conjunto, verifica-se que as possibilidades de um negro chegar a integrá-lo são enormemente menores, já que de cada mil brancos ativos maiores de dez anos, 23 são empregadores, contra apenas quatro pretos donos de empresas por cada mil empregados. Examinando a carreira do negro no Brasil se verifica que introduzido como escravo, ele foi desde o primeiro momento chamado à execução das tarefas mais duras,  como mão de obra fundamental de todos os setores produtivos.
Tratado como besta de carga exaurida no trabalho, na qualidade de mero investimento destinado a produzir o máximo de lucros, enfrentava precaríssimas condições de sobrevivência. Ascendendo à condição de trabalhador livre, antes ou depois da abolição, o negro se via preso a novas formas de exploração que , embora melhores que a escravidão, só lhe permitiam integrar-se na sociedade e no mundo cultural, que se tornaram seus, na condição de um subproletariado compelido ao exercício de seu antigo papel, que continuava sendo principalmente o de animal de serviço. Apesar da associação da pobreza com a negritude, as diferenças profundas que separam a e opõem os brasileiros em extratos flagrantemente contrastantes são de natureza social. Entretanto, o vigor da ideologia assimilacionista, assentada na cultura vulgar e também ensinada nas escolas, e das atitudes que começam a generalizar-se entre todos os brasileiros de orgulho por sua origem multirracial, e dos negros por sua própria ancestralidade, permitirão enfrentar com êxito as tensões sociais decorrentes de uma ascensão do negro, que lhe augure uma participação igualitária na sociedade nacional. É preciso que assim seja, porque somente assim se há de superar um dos conflitos mais dramáticos que desgarra a solidariedade dos brasileiros.
O contingente imigratória europeu intergrado na população brasileira é avaliado em 5 milhões de pessoas compostos principalmente por portugueses, que vieram desde os primeiros séculos e se tornaram dominantes pela multiplicação operada através do caldeamento com índios e negros, posteriormente seguem-se os italianos, os espanhóis, os alemães, os japoneses e outros contingentes menores de eslavos e árabes. O papel do imigrante foi muito importante como formador de certos conglomerados regionais nas áreas sulinas em que mais se concentrou, criando paisagens caracteristicamente europeias e populações dominadoramente brancas.
O conjunto plasmado com tantas contribuições, é essencialmente uno enquanto etnia nacional, não deixando lugar a que tensões eventuais se organizem em torno de unidades regionais, raciais ou culturais opostas. Uma mesma cultura a todos engloba e uma vigorosa autodefinição nacional, cada vez mais brasileira, a todos anima. Esse brasileirismo é hoje tão arraigado que resulta em xenofobia, por um lado, e por outro lado, em vanglória nacionalista. Os brasileiros todos torcem nas copas do mundo com um sentimento tão profundo como se  se tratasse de guerra de nosso povo contra todos os outros povos do mundo. As vitórias são festejadas em cada família e as derrotas sofridas como vergonhas pessoais.
A contraparte dialética da intencionalidade do projeto colonial é o caráter anárquico, que obrigava a buscar soluções próprias ajustadas à sua natureza e agindo longe das vontades oficiais, a ação do colono exerceu-se quase sempre improvisadamente e ao sabor das circunstâncias. O maior susto que tiveram os portugueses, no passado, foi ver a força de trabalho escrava, reunida com propósitos exclusivamente mercantis para ser desgastada na produção, insurgir-se, pretendendo ser tida como gente com veleidades de autonomia e autogoverno. Do mesmo modo, a grande perplexidade das classes dominantes atuais é que esses descendentes daqueles negros, índios e mestiços ousem pensar que este país é uma república que deve ser dirigida pela vontade deles como seu povo que são. A resistência às forças inovadoras da Revolução Industrial e a causa fundamental de sua lentidão não se encontram no povo o no caráter arcaico de sua cultura, mas na resistência das classes dominantes. Particularmente nos seus interesses e privilégios, fundados numa ordenação estrutural arcaica e num modo infeliz de articulação com a economia mundial, que atuam como um fator de atraso, mas são defendidos com todas as suas forças contra qualquer mudança. Ao contrário do que ocorre nas sociedades autônomas, aqui o povo não existe para si e sim para outros. Ontem, era uma força de trabalho escrava de uma empresa agro mercantil exportadora. Hoje, é uma oferta de mão de obra que aspira a trabalhar e um mercado potencial que aspira a consumir. O patronato, na função de coordenador das atividades produtivas, e o patriciado, no exercício do papel de ordenador da vida social, puderam assim fazer frente a todas as tendências dissociativas, preservando a unidade nacional. Desse modo é que o Brasil se implanta como sociedade nacional sobre um imenso território, envolvendo milhões de pessoas mediante o crescimento e diversificação adaptativa do núcleo unitário original, simultaneamente com o estabelecimento de representações locais da mesma camada dirigente em dada uma das variantes regionais.
Transfiguração étnica é o processo através do qual os povos, enquanto entidades culturais, nascem, se transformam e morrem. O primeiro é a biótica que com as relações entre outros seres de regiões diferentes trouxeram epidemias e germes que traziam não o vitimavam mas exterminavam que se aproximasse a eles. Uma segunda instância é a ecológica, pela qual os seres vivos, por coexistirem, afetam-se uns aos outros em sua forma física, em seu desempenho vital. A terceira instância é a econômica, que, convertendo uma população em condição de existência material de outro, em prejuízo de si própria, pode levá-la ao extermínio. Uma última instância é a psicocultural que pode dizimar populações retirando-lhes o desejo de viver, como ocorreu com os povos indígenas que se deixaram morrer por não desejar a vida que se lhes ofereciam. Na história do Brasil, vimos surgir o brasilíndio como um contingente de vigor admirável tanto na destruição de seu gentio materno, como forma de expandir-se, quanto apropriando-se de mulheres para reproduzir. Vimos algo semelhante ocorrer com o negro, que, refugiando-se num quilombo, reconstitui a vida que aprendera a viver no núcleo colonial de forma a readquirir sua dignidade e possibilitar sua sobrevivência. A imigração estrangeira, principalmente de pobres trabalhadores brancos europeus, tornados excedentes de suas economias nacionais, representou também uma enorme ameaça de transfiguração da população brasileira preexistente, tal como ocorreu no Uruguai e Argentina. Tais são os brasileiros de hoje, na etapa que atravessam de sua luta pela existência. Já não há praticamente índios ameaçando o seu destino. Também os negros desafricanizados se integram nela como um contingente diferenciado, mas que não aspira a nenhuma autonomia étnica. O próprio branco vai ficando cada vez mais moreno e até orgulhoso disso.

Fonte: "O Povo Brasileiro - Darcy Ribeiro."

terça-feira, 13 de setembro de 2016

CAPITULO III - PROCESSO SOCIOCULTURAL - parte 1


Na busca de uma identidade étnica única tiveram várias guerras no Brasil de uma determinada raiz étnica subjulgando a outra, temos a exemplo disso a guerra dos Cabanos, assim com também os Palmares. Um outro exemplo foi Canudos que tinha um viés mais classista. O processo de formação do povo brasileiro, que se fez pelo entrechoque de seus contingentes índios, negros e brancos, foi altamente conflitivo. O conflito interétnico se processa no curso de um movimento secular de sucessão ecológica entre a população original do território e o invasor que a fustiga afim de implementar um novo tio de economia e de sociedade. As forças que se defrontam nessas lutas eram desiguais, de um lado as sociedades tribais que eram estruturadas com base no parentesco e outras formas de sociabilidade e com uma profunda identificação étinica e com um modo de vida solidário. Do lado oposto, uma estrutura estatal, fundada na conquista e dominação de um território, cujos habitantes, qualquer que seja a sua origem, compõem uma sociedade articulada em classes, antagonicamente opostas mais imperativamente unificadas para o cumprimento de metas econômicas socialmente responsáveis. Ao longo de dois séculos e meio, os conflitos sucederam o plano adminstrativo que culminou na deportação dos Jesuítas primeiro em São Paulo se espalhando para a demais regiões da colônia. A companhia dos jesuítas crescera de tal forma que se tornara muito rica, eles tinha grandes propriedades de terras, as melhores propriedades urbanas, engenhos, rebanhos, serrarias e muitos outros bens. Quando foram expulso pode se avaliar o tamanho de seus bens durante o espólio para a distribuição entre os colonos nobres. O sistema de economia solidária pregada pelos jesuítas tomara tamanha proporção que passou a causar inveja e cobiça, fazendo com que pressionassem a coroa para a desapropriação desses bens a fim de toma-los para si através do sistema burocrático.
No plano econômico o Brasil é produto de implantação e interação de quatro ordens de ação empresarial, sendo primeiramente a principal delas a escravista ( latifundiária e monocultura), subsequente mente a comunitária jesuítica, a multiplicidade de microempresas de produção de gêneros de subsistência e de criação de gado. As empresas escravistas integram o Brasil nascente na economia mundial e asseguram a prosperidade secular dos ricos, as missões jesuíticas solaparam a resistência dos índios, contribuindo para a liquidação, as empresas de subsistência viabilizaram a sobrevivência de todos e incorporaram os mestiços de europeus com índios e com negros, plasmando o que viria a ser o grosso do povo brasileiro. Sobre esta três empresas, havia uma quarta dominadora, constituída pelo núcleo portuário de banqueiros, armadores e comerciantes de importação e exportação, sendo este o setor mais lucrativo da economia colonial, pois intermediava as relações entre Brasil, Europa e Africa no tráfico marítico, no câmbio, na compra e venda.
Na organização Urbana, nossa primeira cidade, de fato, foi a Bahia, já no primeiro século, onde surgem também o Rio de janeiro e João Pessoa. A partir do segundo século e nos subsequentes irão surgindo as outras cidades que foram crescendo no decorrer dos séculos e se tornaram centros de vida urbana. A independencia espalhou quantidades de lusitanos por toda a parte, todos muito voltados ao comércio, como agentes de empresas inglesas. A abolição, dando alguma oportunidade de ir e vir aos negros, encheu as cidade do Rio de Janeiro e da Bahia de núcleos chamados africanos, que se desdobraram nas favelas de agora. Na passagem do século com a crise de desemprego na Europa desembarcam cerca de 7 milhões de europeus no Brasil, concentrando a maior parte em São Paulo onde renovaram a economia da região. Foram eles quem iniciaram o processo de industrialização do país. As cidades e vilas da rede colonial que correspondem a civilização agrária, eram centros de dominação colonial criados por ato expresso da Coroa para defesa da costa. Exerciam, como função principal, o comércio de importação e contrabando, a prestação de serviços aos setores produtivos na cobrança de impostos e taxas, concessão de terras, de legitimação de transmissão de bens por herança ou por venda e de julgamento de conflitos. As principais edificações das cidades eram igrejas, conventos e fortalezas, que também era seu principal atrativo. O fazendeiro ou comerciante tinha e mantinha agregados que os serviam sem nenhum salário, apenas recebiam os mantimentos para sua sobrevivência. Essa gente auxiliava e todas as tarefas doméstica e estava destinadas a abrilhantar a posição dos ricos e remediados, carregando a eles próprios, a seus objetos e dejetos, amamentando os recém-nascidos, servindo-lhes, enfim de mãos e de pés. Apesar das diferenças entre as formações socioculturais europeias e as brasileiras, ambas eram fruto de um mesmo movimento civilizatório. Com a industrialização se altera essa constelação urbana no que tinha de fundamental, que era sua tecnologia produtiva, transformando todo o seu modo de ser, de pensar e de agir.
            No Brasil, a industrialização promove a expulsão da população do campo, com o crescimento dessas populações do campo ao longo dos séculos anteriores a este processo, vivemos um dos mais violentos êxodos rurais, tanto mais grave porque nenhuma cidade brasileira estava em condições de receber esse contingente espantoso de população. Sua consequência foi o aumento da miséria da população urbana e maior competitividade por empregos, embora haja variações regionais e São Paulo represente um grande percentual nesse translado, o fenômeno se deu por todo o país. No presente século, teve lugar uma urbanização caótica provocada menos pela atratividade da cidade do que pela evasão da população rural, ocasionando na loucura de termos algumas das maiores cidades do mundo, tais como São Paulo e Rio de Janeiro, com o dobro da população de Paris ou Roma, mas dez vezes menos dotadas de serviços urbanos e de oportunidade de trabalho. Esse crescimento explosivo entra em crise em 1982, anunciando a impossibilidade de seguir crescendo economicamente sob o peso das constrições sociais que deformavam o desenvolvimento nacional. Primeiro a estrutura agrária dominada pelo latifúndio, segundo a espoliação estrangeira que amparada pela política governamental fortalecera seu domínio. Em nossos dias, o principal problema brasileiro é atender essa imensa massa urbana que, não podendo ser exportada, como fez a Europa, deve ser reassentada aqui. A moderna industrialização brasileira teve impulso através de dois atos de guerra propostos por Getúlio Vargas que foi a construção da Companhia Siderúrgica Nacional em Volta Redonda e a devolução das jazidas de ferro de Minas Gerais que deram origem a Vale do Rio Doce. Essa política de capitalismo de Estado e de industrialização de base provocou reações adversas dos privatistas e dos porta-vozes dos interesses estrangeiros. Quando Getúlio se prepara para a criação da Eletrobrás e da Petrobrás a mídia faz uma campanha de desmoralização do seu governo o qual valeu o próprio suicídio, que acordou a nação para o caráter daquela campanha e quais os reais interesses dos inimigos do governo. Com a eleição de Juscelino Kubtschek, desencadeia a industrialização substitutiva, abandonando a política de capitalismo de Estado atraindo numerosas empresas para implantar subsidiárias no Brasil, concedeu subsídios, terrenos, isenção de impostos, empréstimos e avais estrangeiros. O Estado brasileiro não tem nenhum programa de reestruturação econômica que permita garantir pleno emprego a essas massas dentro de prazos previsíveis. Os tecnocratas dos últimos governos só veem saída na venda a qualquer preço das indústrias criadas no passado com tão grandes sacrifícios, confiante em que isso nos dará a prosperidade, se não para o povo trabalhador, ao menos para os que estão bem integrados no sistema econômico. O que nos falta hoje é maior indignação generalizada em face de tanto desemprego,
tanta fome e tanta violência desnecessárias, porque perfeitamente sanáveis com alterações estratégicas na ordem econômica. Falta competência política para usar o poder na realização de nossas potencialidades. A própria população urbana encontra soluções para seus problemas com o que está a seu alcance, aprende a edificar favelas nas morrarias mais íngremes fora de todos os regulamentos urbanísticos, mas que lhes permitem viver juntos aos seus locais de trabalho e conviver em comunidades humanas. O favelado torna a crise das drogas no meio em que vive como um sistema de empregabilidade e um padrão de carreira altamente desejável para a criançada. Outro processo dramático é a deculturação dessa população das favelas onde sua gravidade se assemelha ao ocorrido no passado com os índios, o negro e o próprio europeu no processo de deseuropeização. Ultimamente a coisa se tornou mais complexa porque as instituições tradicionais estão perdendo todo o seu poder de controle e de doutrinação. O que opera é um monstruoso sistema de comunicação de massa fazendo a cabeça das pessoas, impondo-lhes padrões de consumo inatingíveis, desejos inalcançáveis, aprofundando mais a marginalidade dessas populações e seu pendor à violência. Algo tem que ver a violência desencadeada nas ruas com o abandono dessa população entregue ao bombardeio de um rádio de uma televisão social e moralmente irresponsáveis, para as quais é bom o que mais vende, refrigerantes ou sabonetes, sem se preocupar com o desarranjo mental e mora que provocam.
Nossa tipologia de classes sócias é formada pelo patronato de empresários onde o poder e a riqueza vem da exploração econômica e o patriciado, cujo mando decorre do desempenho de cargos. Cada patriciado enriquecido quer ser o patrão e cada patrão aspira às glórias de um mandato que lhe dê, além de riqueza, o poder de determinar o destino alheio. Nas ultimas décadas surgiu e se expandiu a classe dos tecnocratas, que controlam a mídia coformando a opnião pública, eles elegem parlamentares e governantes, ou seja, eles manda com desfaçatez cada vez mais desabrida.
 Abaixo ficam as classes intermediárias, propensos a prestar homenagem as classes dominantes, tirando disso alguma vantagem. Dentro dessa classe, entre o clero e os raros intelectuais, é que surgiram mais subversivos em rebeldia contra a ordem. A insurgência mesmo foi desencadeada por gente de seus estratos mais baixos. Por isso mesmo mais padres foram enforcados que qualquer outra categoria de gente. Seguem-se as classes subalternas, formada por pequenas proprietários, arrendatários, gerentes de grandes propriedades rurais, etc. Abaixo desses bolsões, formando a linha mais ampla do losango de classes sociais brasileiros, fica a grande massa das classes oprimidas dos chamados marginais, principalmente negros e mulatos, moradores das favelas e periferias da cidade. Essa estrutura de classes engloba e organiza todo o povo, operando como um sistema autoperpetuante da ordem social vigente. As classes subalternas são as classes consumidoras onde seu pendor está mais para defender o que já tem e obter mais, do que para transformar a sociedade. O quarto estrato é formado pelas classes oprimidas que são excluídos da vida social e lutam por ingressar no sistema de produção e pelo acesso ao mercado. Essa configuração de classes antagônicas organiza-se de fato para fazer oposição às classes oprimidas em ração do pavor-pânico que infunde a todos e ameaça de uma insurreição social generalizada.
No Brasil, as classes ricas e pobres se separam uma das outras por distâncias sociais e culturais quase tão grandes quanto as que medeiam entre povos distintos. Essas diferenças sociais são remarcadas pela atitude de fria indiferença com que as classes dominantes olham para esse depósito de miseráveis, de onde retiram a força de trabalho de que necessitam. Não é por acaso, pois o Brasil passa de colônia a nação independente e de Monarquia a República, sem que a ordem fazendeira seja afetada e sem que o povo perceba. Todas nossas instituições políticas constituem superfetações de um poder efetivo que se mantém intocado: o poderio do patronato fazendeiro. A única saída possível para essa estrutura autoperpetuante de opressão é o surgimento e a expansão do movimento operário. É por esse caminho que as instituições políticas podem aperfeiçoar-se, dando realidade funcional à República.

Fonte: "O Povo Brasileiro - Darcy Ribeiro."